O Negro na Sociedade Brasileira

O NEGRO NA SOCIEDADE BRASILEIRA

No decorrer do período colonial, as populações negras desembarcadas no Brasil foram distribuídas em grande quantidade nas regiões litorâneas, com maior concentração do que nas regiões Nordeste e Sudeste, cujo crescimento econômico no transcorrer dos séculos XVII, XVIII e XIX foi garantido pela expansão das culturas de cana-de-açúcar, mineração e cultivo do café.

Esse sistema garantiu aos senhores de engenho e latifundiários um grande patrimônio. Entretanto, em péssimas condições de vida, coube ao povo afro em sua diversidade criar estratégias para reverenciar seus antepassados, proteger seus valores, manter e recriar vínculos com seu lastro histórico, assim como reconstruí-la como forma de resistência.

Até 1888, momento da extinção formal da escravidão no Brasil, por meio da Lei Áurea, a população negra escravizada vivenciou a experiência de ter seus poucos direitos assinalados em diversos documentos oficiais sob a tutela dos senhores de terra e das lideranças políticas.

No entanto, a série de obstáculos enfrentados nesse contexto não impediu o povo negro de promover a continuidade de suas histórias e suas culturas, bem como o ensinamento de suas visões de mundo. Nas formas individuais e coletivas, em senzalas, quilombos, terreiros, irmandades, a identidade do povo negro foi reconhecida como patrimônio da luta por direitos sociais, políticos e econômicos.

Apesar das péssimas condições de sobrevivência que a população negra enfrentou no Brasil, e ainda enfrenta, a relação com a ancestralidade e a religiosidade africanas e com os valores nelas representados, assim como a reprodução de um senso de coletividade, por exemplo, possibilitaram a dinamicidade da cultura e do processo de resistência das diversas comunidades afro-brasileiras. Para muitos estudiosos, a matriz cultural afro é aquela que mais deixa marcas no Brasil, principalmente, na música, na religiosidade, na dança, na culinária e no esporte.

Estudos conduzidos pelo historiador da UFRJ Manolo Florentino mostraram que três quartos dos mercadores que controlavam o tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro, no período de 1790 a 1830, eram sediados no Brasil.

Outra informação que o banco de dados contesta é a de que um contingente igual ao dos mais de 10 milhões de escravos que chegaram às Américas morreu na travessia. 

O mapeamento indica que 12,5 milhões deixaram a costa africana durante o período da escravatura, ou seja, o número de mortos ficaria em torno de 2,5 milhões. (BBC, 2007)

A Lei Áurea foi promulgada há 130 anos e esse tempo não foi suficiente para solucionar uma série de problemas consequentes das dinâmicas segregacionistas forjadas ao longo dos quatro séculos de sistema escravocrata. Ainda nos dias atuais permanece em pauta a luta pela participação equitativa de negros e negras nos espaços da sociedade brasileira e pelo respeito à humanidade dessas mulheres e homens que constituem o Brasil contemporâneo.

A desigualdade no Brasil compreende o campo econômico, social e, especialmente, o da educação e das oportunidades. Negros e pardos representam 53,6% de toda a população do Brasil e, mesmo sendo a maior parte está numa minoria de posições de destaque e prestígio social, como chefias de empresas e outros cargos de maior status. Cerca de 12% da população preta e 13% da parda têm ensino superior. Entre os brancos, o número é 31%. A diferença no nível de escolaridade se reflete também na renda. Conforme dados de 2015 do IBGE, o salário da população preta e parda equivale a 59,2% da população branca. Em se tratando da mulher negra, seu salário equivale a 35% ao de um homem branco, conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD, 2014), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.

Com essa finalidade, segmentos da sociedade civil têm atuado fortemente contra o racismo e as discriminações raciais, tomando a linguagem afro-brasileira como ancoragem e lapidando as relações sociais decorrentes no entrecruzar dessa cultura com a cultura eurocêntrica da sociedade.

De 1815, quando Portugal adere ações para reduzir o tráfico ao sul do Equador, a 1888, com a Lei Áurea, a população escrava recorreu a múltiplas formas de resistência para que seus limitados direitos fossem reconhecidos e garantidos. Durante esse período o Brasil vive um dos seus pioneiros e mais significativos movimentos sociais, o movimento abolicionista que teve importante papel na luta contra a escravidão.

O processo de transformação da mão de obra dos trabalhadores escravizados em trabalhadores livres foi paulatino, e leis como a do Ventre Livre (1871) ou Lei dos Sexagenários (1885), que a rigor deveriam auxiliar a população escrava, caracterizaram-se como mais um meio de controle em favor da ordem escravocrata. Assim também impediu-se a integração da população negra liberada mediante diversas outras leis que, ao serem introduzidas à realidade, acabaram por tornar-se meios de promoção dos grupos mais fortes em detrimento da população negra que delas deveria ter seu suporte.

No decorrer de quase todo o século XX, quando se consolidou a ampliação do capitalismo brasileiro, praticamente nada de efetivamente relevante foi feito em termos de uma legislação para a promoção da cidadania plena da população negra. Inclusive, instaurou-se no Brasil a concepção de uma exemplar democracia racial.

Mesmo após as experiências das I e II Guerras Mundiais, apenas em 1951, pela Lei Afonso Arinos, o preconceito racial caracterizou-se como contravenção penal. Foi também apenas na segunda metade do século XX que, na perspectiva acadêmica, os trabalhos de cientistas sociais como Abdias Nascimento, Clóvis Moura, Florestan Fernandes, Lélia Gonzalez, Octavio Ianni, Roger Bastide, entre outros, trouxeram denúncias contundentes sobre as condições de vida da população negra no Brasil, fazendo contraponto às teorias de Sílvio Romero, Oliveira Viana, José Veríssimo, Nina Rodrigues e Gilberto Freyre que, por décadas, construíram a ideologia de uma sociedade sem racismo e com uma miscigenação harmônica.

Para Florestan Fernandes, um dos mais importantes pensadores que o país já teve, o brasileiro “tem preconceito de ter preconceito” e, nesse sentido, teria “dois níveis diferentes de percepção da realidade e de ação ligados com a ‘cor’ e a ‘raça’: primeiro, o nível manifesto, em que a igualdade racial e a democracia racial se presumem e proclamam; segundo, o nível disfarçado, em que funções colaterais agem através, abaixo e além da estratificação social” (FERNANDES, O negro no mundo dos brancos, p. 82. 2ª ed. rev. São Paulo: Global, 2007).

Embora se fale de forma recorrente no “nível manifesto” que se vive em um país sem conflitos raciais e com iguais oportunidades para todos os brasileiros, por meio das percepções e ações no “nível disfarçado”, como demonstrava Fernandes em meados do século XX, as desigualdades raciais se perpetuam na sociedade.

Um exemplo relevante da permanência desse tipo de concepção e ação, como diria Fernandes, pode ser visto em duas pesquisas, uma feita na USP, em 1988, e outra aplicada em todo o Brasil pelo Instituto Data Folha, em 1995, ambas mencionadas no trabalho da antropóloga Lília Moritz Schwarcz, intitulado “Racismo no Brasil” (2001): na primeira pesquisa, quando perguntados, 97% dos entrevistados responderam que não eram racistas; entretanto, 98% dos mesmos entrevistados também responderam que conheciam pessoas racistas. Isto é, quase todos os entrevistados conheciam pessoas racistas, mas praticamente nenhum deles afirmava ser racista. Na segunda pesquisa, o resultado foi bastante semelhante, pois apenas 10% dos entrevistados afirmaram que eram racistas, enquanto 89% deles afirmaram a existência de racismo no Brasil (SCHWARCZ, 2001, p. 11, 76).

Percebe-se, com as informações acima que o racismo ainda é um tabu na sociedade brasileira e que, em pleno século XXI, precisa ser devidamente enfrentado a fim de se construir uma sociedade democrática e com equidade. O racismo estrutura as relações sociais nesse país e precisa ser devidamente combatido nos mais diversos espaços sociais de forma eficiente e efetiva.

Vidal Dias da Mota Junior

Descendente de quilombolas do Vale do Ribeira. Professor universitário. Graduado em Ciências Sociais - UNESP; Especialista em Gestão Pública e Gerência de Cidades - UNESP, Mestre em Ciências Sociais- UFSCar; Doutor em Ciências Sociais - UNICAMP e Pós-Doutor em Ciências Ambientais - UNESP.
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