Roger Machado, o racismo e a necessidade de dados sobre pessoas negras no futebol.

Nessas últimas semanas, a mídia e a grande rede foram ocupadas por denúncias de racismo no meio de futebol, e todas dentro da Conmebol Libertadores. Uma delas ocorreu no jogo entre Corinthians e Boca Juniors, no qual o argentino Leonardo Ponzo foi visto (e filmado) fazendo gestos, imitando macaco. Foi identificado, detido e levado ao Juizado Criminal Especial no próprio estádio do Corinthians. A fiança, no valor de R$3.000,00, foi paga pelo consulado argentino de São Paulo. E, até mesmo para ilustrar o deboche e o sentimento de impunidade em casos desse tipo, especialmente da entidade que comanda o futebol sul-americano, funcionários do consulado afirmaram, pasme-se, que o comerciante não imitava um macaco, mas estava tão somente se coçando. E, em sua viagem de volta à Argentina, Ponzo publicou uma foto em sua rede social, com os dizeres: “Acá no paso nada”, seguidos de um desenho de um macaco. A segunda ocorrência de injúria racial se deu no jogo entre Emelec e Palmeiras. Há um vídeo que registra um torcedor do Emelec ofendendo os brasileiros: “Macaco! Macaco! Vocês são todos macacos!”. Nesse caso, ao menos até esse momento, não se sabe quem cometeu tal ato nem se haverá alguma punição. Houve, tão somente, a manifestação de solidariedade da Sociedade Esportiva Palmeiras em relação aos seus torcedores. E por fim, o terceiro episódio se deu no jogo entre River Plate e Fortaleza, em que um torcedor é registrado jogando banana para a torcida do Fortaleza. Nesse caso, ele foi identificado pelo River Plate, e, embora não tenha tido seu nome divulgado, além de ser suspenso por seis meses pelo clube, terá que passar por um curso de conscientização sobre consequências da xenofobia. Destaca-se que essa foi uma ação do clube, tão somente, e não da Conmebol. E podem estar certos que nas próximas semanas outros casos irão ocorrer, e assim sucessivamente, caso a Conmebol não comece a agir com rigor contra tais abomináveis manifestações. É claro que não se quer, ao se trazer o exemplo dessas situações que sucederam nessa última semana, envolvendo torcedores estrangeiros, dar-se a entender que a injúria racial, quando se pensa em futebol, é algo que venha exclusivamente de fora do país. De forma alguma. E até mesmo para não se estender com outros tantos exemplos abjetos, contemporâneos que sejam, e que podem ser encontrados aos borbotões em publicações virtuais ou não, veja-se o exemplo de um fato ocorrido em 1921. À época, o presidente Epitácio Pessoa, sob a justificativa de “preservar a reputação do país no exterior”, vetou a presença de jogadores negros representando a seleção brasileira no torneio sul-americano daquele ano, na Argentina, fato recortado por Eduardo Galeano no livro “Futebol, ao Sol e à Sombra”, sob o título Da Mutilação à Plenitude: “Em 1921, a Copa América ia ser disputada em Buenos Aires. O Presidente do Brasil, Epitácio Pessoa baixou um decreto de brancura: ordenou que não se enviasse nenhum jogador de pele morena, por razões de prestígio pátrio. Das três partidas que jogou, a seleção branca perdeu duas.” Vale dizer que a então CBD (Confederação Brasileira de Desporto) acatou a intervenção presidencial, o Brasil perdeu o torneio, e tal situação gerou reações, como por exemplo, do escritor Lima Barreto em artigo de jornal. Ou seja, os exemplos envolvendo racismo e futebol vão muito além do nosso espaço e desse tempo presente, refletindo o racismo estruturado no país, também por consequência da escravidão e de todos os seus corolários sobre os quais foi construída a História do Brasil. E sobre isso, sobre a relação entre o racismo e o futebol, uma das vozes quase que solitárias na atualidade, mas mesmo assim de uma lucidez extraordinária, é a do técnico Roger Machado (uma das exceções de um técnico negro a dirigir um time da elite do futebol, no caso, o Grêmio, de Porto Alegre, que, hoje, está na segunda divisão). Em entrevista à Agence Frence-Presse (AFP), Roger mostra-se categórico quanto ao comportamento do presidente Jair Bolsonaro, já que para ele a conduta do mandatário leva a um aumento de casos de racismo no Brasil. “Os indivíduos (racistas) que estavam escondidos (porque a sociedade os reprimia) se sentem autorizados a se manifestar segundo as posturas e pontos de vista do líder da nação, (porque estes) são convergentes. Temos que resistir, porque sua intenção é que retrocedamos, e isso não podemos permitir”, afirmou. Outro exemplo da lucidez adjetivada acima surge também em respostas como: “O futebol revela o que somos como sociedade. A representatividade da população negra em outras áreas é muito parecida com a do futebol”; “Quando negros e brancos decidem ascender na pirâmide social, os filtros começam a aparecer. São os filtros da ideologia que criou o racismo e que atribui ao negro uma condição de menor inteligência, menor capacidade de liderança e gestão, justamente as competências de um treinador de futebol”; “O racismo velado, à brasileira, esse que construiu um falso mito de uma ‘democracia racial’ na qual, em teoria, não havia racismo nem preconceitos no Brasil. A discriminação sistemática, estrutural, é outra, muito mais complexa”. Quando perguntado sobre se o posicionamento de atletas e treinadores quanto ao racismo deveria ser mais efetivo, ele responde: “Como atletas somos treinados para não sairmos do campo. Há muitas formas diferentes de se manifestar. A questão é que a maioria de nós, lamentavelmente, tem um nível de escolaridade mais baixo porque o país não privilegiou nossa educação plena. Isso também impacta na nossa consciência, em nossa construção ideológica para debater esses assuntos”. Roger é uma voz extremamente relevante que deveria ser muito mais ouvida, bem como muito mais estimulada, e constantemente, claro que não só por essa condição mas também porque ele, como já mencionado, é um dos raríssimos técnicos negros que dirigiu – e segue dirigindo – times da elite do futebol brasileiro. Importante colocar que a elaboração desse artigo nos instigou, até mesmo para dialogar com seu conteúdo, fazer um levantamento dos técnicos dos times que ocupam as quatro divisões do futebol brasileiro quanto à sua raça/cor. Ao iniciar a busca por informações quanto aos técnicos, então, dos 124 clubes que se espalham pelas principais divisões do futebol nacional (20 na série A, 20 na série B, 20 na série C, e 64 na série D) nos deparamos com um significativo dificultador: não há tais dados à disposição. Poderíamos, até, capturar na internet imagens dos treinadores para se determinar qual raça/cor eles pertencem. Obviamente que, em alguns casos, tal característica fica evidente. Em outros, não. Assim, como estipular uma porcentagem específica de treinadores negros com base em imagens que não são nítidas em relação a esse aspecto? Seríamos, para dizer o mínimo, levianos. Assim, nesse momento, mais do que trazer a porcentagem (que não seria exata), há que se destacar aqui a real importância de se levantar esses dados (assim como vários outros), afinal o dado que deve ser coletado e considerado para efeitos estatísticos é aquele que provém do próprio treinador, da raça que ele declara pertencer, e não a que achamos que ele pertence. Será que poderia vir um censo por aí? Na verdade, já em resposta, acreditamos que mais do que o futuro do pretérito (poderia), cabe o imperativo afirmativo do verbo “dever”: Deve vir um censo. Os casos citados de racismo, que não são os únicos e talvez estejam longe de serem os últimos, o recorte da entrevista de Roger Machado, além de uma tentativa – fracassada – de um levantamento feito que não permitiu o acesso às informações, nos convocam a pensar caminhos de enfrentamento, caminhos esses que passam pelo levantamento de dados e informações sobre quem faz o mundo do futebol acontecer e qual é sua cor. Enxergar quem é quantos são os profissionais negros e negras em cargos de comando (treinadores, comissões técnicas, dirigentes, etc.), quantos são os jogadores e jogadoras negros, como as  torcidas estão constituídas racialmente, pode nos orientar em caminhos e estratégias que combatam o racismo de forma mais amplificada e profunda para além (muito além, diga-se) de punições a atos individuais e com efeitos de baixo alcance. Desse modo, o conteúdo exposto neste artigo ilustra fielmente a constatação necessária (ainda que óbvia) que qualquer conteúdo que possui como linha mestra raça/racismo detém um potencial de discussão enorme pois exige o cuidado com a pesquisa e o uso dos dados, imprime ponderações e reflexões, qualifica resistência(s), instiga o enfrentamento e inspira a materialização de práticas antirracistas. (com a colaboração de Helton Souto)

Alexandre Dantas

Co-fundador do DACOR. Doutor e Mestre em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”- UNESP – Araraquara. Docente por mais de 20 anos na PUC– Minas. É autor de “Vão e Desgraçado (e outros contos tão desimportantes quanto)”, publicado pela editora Urutau, em 2018.