Pesquisadores utilizaram modelos matemáticos para evidenciar a iniquidade no acesso a moradia, água e esgoto por parte das populações racializadas
Ser preto, pardo ou indígena no Brasil significa, inclusive, habitar regiões metropolitanas onde a violência do racismo estrutural se manifesta como falta de habitação digna, água e esgoto. É o que aponta um estudo do programa de pós-graduação em Ciências Ambientais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). Vidal Dias da Mota Junior, cientista social com pós-doutorado em Ciências Ambientais pela Unesp, professor universitário e sócio-fundador do Instituto DACOR é um dos autores desse trabalho, que gerou um indicador inédito no País, o Índice de Racismo Ambiental (IRA).
Mota, que é descendente de quilombolas do Vale do Ribeira, contextualiza que as pesquisas mais antigas já demonstram o perfil racializado das favelas e contabilizam que 70% das populações que nelas moram são pessoas negras. “Geralmente é onde falta infraestrutura, onde a população negra sempre esteve vulnerável, onde não chega água, onde o acesso à moradia sempre veio de forma intermitente.” Agora, de maneira estruturada, o IRA revela essas desigualdades e surge como mais um elemento para guiar políticas públicas antirracistas.
O universo compreendido nesse estudo abrangeu cinco regiões metropolitanas nas cinco macrorregiões do Brasil: Cuiabá (MT), Curitiba (PA), Manaus (AM), São Luís (MA) e Sorocaba (SP). Embora mais recente no Brasil, o conceito de racismo ambiental remonta aos anos 1980, principalmente nos EUA, onde tem sido utilizado “como mais uma das dimensões da segregação das pessoas racializadas”, pontua o professor.
“O mais terrível e que não pode continuar acontecendo é esse panorama ser naturalizado na paisagem das nossas cidades”, continua o sócio-fundador do DACOR. “Esse é o debate ao meu ver: essa normalização do absurdo que é a violência contra esses grupos, minoritários quanto ao poder, enquanto não vemos campanhas para zerar o déficit habitacional, para que não tenhamos mais favelas ou submoradias nas nossas cidades, de forma que o estado assuma que todo cidadão brasileiro terá o direito à moradia em um período determinado.”
Na medida em que se normalizam as condições precárias de alguns perante outros, essas populações vivem ininterruptamente sujeitas a riscos, como doenças, contaminações diversas, excesso de ruído, maior exposição a áreas com altas chances de incêndio, entre outros fatores que deveriam ser inaceitáveis. Conforme explica o texto do estudo, as áreas com maior IRA estão nos estados de menor PIB, como Maranhão e Amazonas, enquanto os índices mais baixos foram detectados nas regiões metropolitanas de Curitiba (PA) e de Sorocaba (SP).
“Entre todos os municípios analisados, Autazes (AM) obteve o IRA mais alto, e Curitiba (PR) o mais baixo. A região metropolitana de Cuiabá apresentou o maior desvio padrão, indicando uma grande discrepância nos IRAs das suas cidades, e a região metropolitana de Sorocaba também mostrou variações significativas”, ainda de acordo com a pesquisa, que também é assinada por Camilla Bezerra Ferreira de Souza, Daniela Prando da Silva, Gabriela dos Santos Luchetti Vieira, José Arnaldo Frutuoso Roveda e Sandra Regina Monteiro Masalskiene Roveda.
“Mesmo que de forma simplificada, a proposta de um IRA demonstrou sua validade e produziu resultados significativos, contribuindo não apenas para futuros estudos, mas também para uma reflexão profunda sobre como o racismo ambiental está sendo abordado atualmente”, analisam os acadêmicos. Para chegar a um indicador confiável, foi utilizado um avançado modelo matemático baseado no “sistema de inferência fuzzy”.
Metodologia sofisticada
Esse sistema possui quatro etapas: fuzzificação, inferência fuzzy, base de regras e defuzzificação. “A interação entre as variáveis possui um comportamento de proporcionalidade atípico, no qual quanto maior a racialização e menor a moradia e o saneamento, maior será o IRA, indicando o pior cenário”, explicam os estudiosos. “Enquanto o melhor cenário é indicado quando a racialização, moradia e saneamento são altos.” Abaixo, pode-se observar a combinação de variáveis para se chegar ao índice final desejado.
Fluxograma do sistema fuzzy, com dois níveis de avaliação
Fonte: Elaboração própria.
O texto da pesquisa explica, ainda, que a variável “Moradia” reflete à porcentagem da população que possui moradia adequada, independentemente de etnia. Já as variáveis “Água” e “Esgoto” se referem à porcentagem da população com acesso adequado aos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário. “A variável de entrada ‘Saneamento Adequado’ é o subíndice de acesso ao saneamento básico adequado”, detalham os pesquisadores. No trabalho em questão, optou-se por trazer o saneamento básico de forma simplificada, somente com as variáveis de “água” e “esgoto”.
Vidal Dias da Mota Junior ressalta que a metodologia em questão é bastante reconhecida e, por isso, muito usada por estudiosos de Matemática, Estatística e Ciências Sociais. No entanto, é pouco utilizada no Brasil, ainda que seja de grande ajuda na elaboração de políticas públicas. “É importante entender que, mesmo sem outros refinamentos nas variáveis da pesquisa, esse índice é muito eficaz para verificar essas desigualdades onde a população já é mais racializada”, completa.
Ou seja, já neste momento inicial de criação do índice seria possível usá-lo com segurança para nortear ações do Estado, especialmente nos municípios com alto índice de racialização. Para o sócio-fundador do DACOR, é essencial que universidades, organizações sociais e outros atores passem a “olhar para a questão da desigualdade no Brasil e para a questão da violência pelo viés racial” – panorama que inclui várias dimensões de racismo, inclusive o ambiental.