por Helton Souto (originalmente publicado no Medium.com)
Este é um artigo escrito em primeira pessoa, tem como ponto de partida uma situação pessoal e prosaica e pretende colocar em debate o racismo estrutural na sociedade brasileira. Não, o leitor não encontrará aqui uma situação de racismo contra minha pessoa. Mas encontrará um exemplo de racismo contra todas as pessoas pretas nesse país.
Tenho um filho de seis anos que, como eu, gosta muito de desenhar. Assim como o pai, ele prefere desenhar com canetas e as nossas estão acabando. Precisamos de mais canetas e, dia desses eu dediquei minutos do meu dia corrido para pesquisar na internet algum local para comprar canetas. Usei para essa pesquisa, evidentemente, o sistema de buscas mais popularizado, disseminado e universalizado do mundo: o Google. Encontrei as tais canetas numa loja, mas, como sempre acontece nas buscas, um outro tipo de produto me chamou a atenção: miniaturas utilizadas em maquetes de projetos arquitetônicos ou urbanísticos. Casas. Pontes. Bancos de praça. Carros. Árvores. Postes de iluminação. Pessoas. Tudo em miniatura. Pensei que meu filho adoraria ter coisas assim aqui em casa.
Esqueci das canetas e parti em busca das miniaturas. Chego nas pessoas em miniatura. Pessoas. Meu assunto está aqui. Falemos um pouco das pessoas representadas por essas miniaturas numa pesquisa no Google. As pessoas em miniatura são brancas. Mas não só. São homens em ternos e gravatas. Mulheres em seus tamancos. Todos têm cabelos lisos. Loiros. Castanhos. Pretos. Lisos. Sempre lisos. Parecem ser profissionais liberais. Elas têm carros. Elas têm filhos igualmente brancos e de cabelos igualmente lisos. São brancas e rosadas as pessoas nas miniaturas. E representam uma certa ideia de sucesso evidenciado nos bens que possuem na forma de gravatas, carros e filhos — sim, esse novo tipo que tem sido entendido também como “bem”. As miniaturas feitas em resina rosa é a branquitude representada no mundo de projetos arquitetônicos ou urbanísticos. Essa representação é feita com base num presente que enxerga e entende como legítimo a ocupação desses espaços por essa branquitude. Minha primeira constatação é que nesse “universo” pessoas pretas não existem.
Porém, avanço em minha busca e chego à conclusão de que estou equivocado. Há pessoas pretas em miniaturas também. Pessoas pretas existem. Mas a experiência de vê-las em miniatura é um tanto mais chocante. Elas são carregadores. Trabalhadores braçais. Elas não têm filhos. Não têm carros. Não estão de bicicleta. Não usam ternos. Nem gravatas. Não usam tamancos. Estão sem camisa. Descalços. A vestimenta é algo entre as roupas usadas pelas pessoas pretas escravizadas e os moradores de rua ali debaixo do elevado a pedir comida e um tanto de trocados. E para mostrar que são pretos e muito pretos e não deixar dúvidas de que pessoas pretas existem, a cor das miniaturas de resina é preta, muito preta.
As miniaturas de maquete são parte de projetos. Projetos são um vir a ser. Um porvir. Maquetes de projetos arquitetônicos ou urbanísticos guardam uma ideia de futuro, uma projeção de algo que se quer ver realizado no real. Ter miniaturas de pessoas nesses projetos significa que se espera que pessoas vivam e convivam ali. Afinal, os edifícios, condomínios, ruas, praças, parques, calçadas, pontes, vias e ciclovias, esses espaços púbicos ou privados foram feitos, obviamente, para pessoas. Mas a ausência de pessoas pretas mostra que o que está projetado é que, sim, pessoas ocupem esses espaços e elas são e devem ser brancas, rosadas, devem ter olhos claros, cabelos lisos, tenham filhos igualmente rosados, andem em carros, vistam ternos, gravatas e tamancos. A visão patética e atrasada da branquitude bem-nascida, cheia de privilégios e bem-sucedida porque tem gravata, casamento, carro e filho e que, claro, merece um bom lugar para viver e desfrutar de sua vida com todos os méritos. O projeto é ter essas pessoas vivendo ali, naqueles condomínios e bairros planejados. E, caso as pessoas pretas queiram se ver dentro desse projeto não será portando bens e em pé de igualdade com a representação das pessoas brancas.
Penso, no entanto, que a questão é um pouco mais complexa e vai além da representação ou não de pessoas pretas. Trata-se de um aniquilamento. Trata-se de um futuro projetado sem pessoas pretas. Se elas não estão sequer no projeto é porque as pessoas pretas não estão pensadas e projetadas na ocupação desses lugares. Essa é a constatação de uma visão perversa que traduz um tanto do racismo estrutural na sociedade brasileira: pretos e pretas não são entendidos sequer como pessoas capazes de estar e ocupar determinados lugares e espaços no presente e no futuro. Se pessoas pretas não são projetadas no futuro é porque a aniquilação deu certo no presente e não há nada sendo construído no presente para que essa visão de futuro se efetive de forma positiva. Essa lógica é portadora dos estranhamentos no tempo presente como ver pessoas pretas com doutorado, residentes de condomínios de luxo, frequentadoras de clubes da elite, portadoras de bens, estudantes universitários, frequentadoras de exposições e mostras, donas de bens, carros, gravatas, tamancos e filhos. Se esse futuro não é projetado cada vez mais serão naturalizados os estranhamentos, a invisibilidade e as violências do passado e do presente. E isso é o racismo operando na estrutura da sociedade.
Importante, diante dessas questões, pensar estratégias para combater essas visões em todos os seus âmbitos de manifestação. Elenco três proposições que, longe de serem únicas, podem ser importantes aliados nesse enfrentamento. Uma delas é o conceito de afrofuturismo que traz em seu cerne a necessidade e urgência em pensar e projetar o futuro com pessoas pretas como ocupantes e agentes de transformação dos mais diversos espaços sociais. Essa é uma questão que atravessa a segurança pública, a educação, a tecnologia, a saúde, a cultura e sociedade de forma profunda e amplificada. Pretendo retomar esse termo em diálogo com autores que têm se dedicado a expandir e difundir esse conceito. No meu entendimento, sem afrofuturismo o lema “vidas negras importam” perde lugar de realização e afirmação.
Um outro elemento é a representatividade. Um país com mais de 50% da população preta ou parda precisa ter em seu projeto de presente e futuro a necessidade de atender e atuar com esse contingente populacional. Não é mais admissível ter um preto aqui e outro acolá numa paisagem branca para servirem de ilustração — e apenas isso — para uma ideia de diversidade. Isso é subrepresentatividade. E disso decorrem algumas reflexões importantes como, por exemplo, quantos pretos e pretas estamos contratando para nossas empresas, quantos pretos e pretas estão em cargos de chefia, em quantos pretos e pretas estamos votando, quantos artistas pretas e pretos temos em nosso acervo, quantos escritores pretos e pretas estamos lendo. Sim, a questão é numérica e pretendo também retomar essa discussão no futuro próximo. Sim, futuro.
Por fim, é fundamental o acesso a dados e informações sobre o racismo de modo a compreender porque ele é estrutural no Brasil. É urgente entender e discutir informação sobre as diferentes formas que o racismo não só se manifesta, mas encontra alicerce e enraizamento na definição e na estrutura da sociedade brasileira. E as informações precisam estar acessíveis de modo a possibilitar a construção de entendimentos, visões e narrativas que ajudem a compreensão e possam ser instrumentos de combate ao racismo. Informação ao alcance de todos significa estar à mão de pesquisadores e de jovens estudantes da educação básica; precisa estar nos programas de TV, nos telejornais, nas redes sociais e na novela das 9. O conhecimento precisa ser universalizado, disseminado, viralizado. Entender que a informação e o conhecimento são base e fundamentos nesse combate nos impõe a necessidade de ampliar acessos, ampliar canais de debate e explorar essa discussão à exaustão.
Pessoas pretas precisam estar projetadas no futuro de modo que possam ocupá-lo e atuar sobre ele de forma genuína, numa perspectiva transformadora e nos mais diferentes espaços na sociedade. Refletir e mudar a matemática de quantos pretos e pretas encontram-se na paisagem branca hoje é fundamental para a construção desse futuro. E acessar, refletir, debater informações sobre racismo estrutural no Brasil é de extrema importância para construir narrativas e combater violências no presente e que comprometem o estar no futuro. Pessoas pretas existem e o presente e o futuro é delas.
PARA CONHECER MAIS:
1. Para ler mais sobre racismo estrutural:
Livro Racismo Estrutural, de Silvio Almeida, Editora Pólen, São Paulo, 2019. O livro faz parte da série Feminismos Plurais, coordenada por Djamila Ribeiro.
2.Para pesquisar figuras para maquete:
3. Sobre o papel das maquetes nos projetos arquitetônicos e urbanísticos:
https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/05.049/576
https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.091/186
4. Para saber mais sobre afrofuturismo:
Artigo O Futuro Será Negro ou Não Será — Kênia Freitas
https://periodicos.unb.br/index.php/dasquestoes/article/view/18706
Palestra TED — Fábio Kabral TED
https://www.youtube.com/watch?v=RmiYQfhlsUE
Palestra TED — Nataly Neri
https://www.youtube.com/watch?v=_D1y9yZRpis&t=748s
Afrofuturo — Podcast