NA REAL: Yannikson: arte pra transformar

Através do teatro e da escrita, o ator, escritor e dramaturgo gaúcho se dedica a construir um futuro mais justo e inspirador para as próximas gerações de pessoas pretas.

Por Dandara Fonseca

Nascido em Santa Maria e criado em Charqueadas, na região metropolitana de Porto Alegre, Yannikson cresceu com pouco contato com a arte. No entanto, desde a primeira vez que pisou em um palco, soube que era esse o caminho que desejava seguir. Hoje, além de ter participado de diversas peças, tanto como ator quanto como dramaturgo, é autor do livro A Terra das Coroas, publicado em 2023 pela ediPUCRS.

Em nossa entrevista, Yannikson compartilhou sua trajetória como homem negro e LGBTQIA+, e destacou a importância construir um mundo melhor para as próximas gerações: “Hoje, além de se verem representadas nos personagens, através das ilustrações, as crianças pretas conseguem se projetar como autoras e autores.”

Dacor. Me conta um pouco mais sobre sua história?
Yannikson
. Eu sou natural de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, que é a cidade da família do meu pai. No entanto, aos dois anos de idade, me mudei para Charqueadas, onde vive a família da minha mãe, e é um dos lugares onde resido hoje, além de Porto Alegre. Charqueadas, apesar de estar na região metropolitana, é uma cidade considerada pequena: não tem cinema, teatro… Mas é lá que me desenvolvo e me descubro em muitos aspectos. Eu também sou filho de um casal interracial, e toda vez que ia para Santa Maria era uma oportunidade de me reconectar com o lado da minha família preta.

E como se deu o seu contato com as artes?
Foi no ambiente escolar. Eu morava em uma cidade pequena e em um dos bairros mais afastados do centro, então todas as atividades da escola chamavam muito a minha atenção. Eu participava da escola aberta, do clube de redação, e isso sempre me despertou uma grande curiosidade pelo mundo artístico. Via a escola como uma oportunidade de me desenvolver, por isso me dedicava muito: caprichava na letra, prestava atenção em tudo, e não tinha vergonha de ler ou de me expressar.

Sobre o que você gostava de escrever?
Eu cresci assistindo novelas com a minha mãe; eu era muito noveleiro! Uma das coisas que eu gostava de ler eram os resumos dos capítulos. Com nove, dez anos, comecei a criar minhas próprias novelas. Fazia fichas dos personagens, desenhava… Era uma forma de colocar minha imaginação para funcionar e me divertir.

E o teatro, quando ele entrou na sua vida?
Aqui em Charqueadas não tem teatro, mas tem um evento chamado Gincana Cultural, que é muito grande e importante na cidade. Eu sempre fui bastante engajado, mas nunca tinha participado da gincana municipal. Até que, em 2016, aos 21 anos, fui convidado para fazer parte do elenco do baile de abertura do evento. Ensaiamos por três meses e, nesse momento, percebi que adorava estar no palco e comecei a me reconectar com essa parte artística. Participei no ano seguinte, e depois fui convidado a integrar a direção dos espetáculos, algo que faço até hoje. A partir daí, as oportunidades foram surgindo muito rápido. Nesse período, também fundei um grupo de teatro do qual faço parte até hoje, o Coadjuvantes.

Antes, você estudava para outra área?
Sim, sou formado em informática. Por muito tempo, achei que esse seria meu caminho profissional, até porque já saí do ensino médio com uma formação técnica, fiz curso no IF. Mas, por volta dos 21, 22 anos, foi quando comecei a me reconectar com as coisas que realmente gostava. E aí eu fiquei muito em dúvida entre fazer faculdade de engenharia de software ou um curso de escrita criativa. Optei pelo segundo e fiz parte da primeira turma de escrita  criativa da faculdade. Essa escolha foi o que me conectou não só com o teatro, mas com todo o meu lado artístico, principalmente com a escrita.

De onde veio a inspiração para o seu livro, o Terra das Coroas?
O meu livro de estreia nasceu na faculdade, durante o meu TCC. Eu vivi a experiência de ser um menino preto em uma sociedade extremamente racista, e era terrível não me reconhecer nos livros. Isso é algo que sinto que ainda acontece, até hoje, porque somos muitas vezes negligenciados e ficamos sem referências. Durante a faculdade, comecei a refletir: “o que eu posso fazer para contribuir para que isso não aconteça com as próximas gerações, ou que aconteça menos?” Foi ao refletir sobre isso que decidi que minha primeira obra publicada seria infantojuvenil.

Como você resumiria o livro?
A Terra das Coroas é esse lugar possível para as crianças de hoje e do futuro. Nesse universo fantástico, cada pessoa nasce com uma coroa: uma de bolhas, outra de plantas… E, claro, as coroas também se referem aos cabelos. O livro trata dos sentimentos, das sensações e de como nos conectamos com eles. A Terra das Coroas é sobre identidades, sobre a pluralidade de ser quem você é, sem limitações.

E como foi o processo de publicação?
Dois anos após o meu TCC, recebi um convite da EDUC, a editora da PUC-SP, para publicar o livro dentro de uma série que eles iam lançar, chamada Narrativas Sensíveis e Outras Histórias. O meu livro é o primeiro dessa coleção, que agora já conta com outra obra publicada. Foi nesse momento que comecei a enxergar o livro como um projeto maior, pensando na capa, nas ilustrações — que foram feitas pela Bárbara Luiza Farias. Foi um processo lindo de revitalização do projeto e da obra em si. O lançamento oficial aconteceu no ano passado, então ainda é tudo muito recente. Para mim, é uma alegria imensa ver como o livro vai reverberando e alcançando novas pessoas.

Créditos da Foto: Gian Michailoff

Quais os principais relatos que você recebe sobre ele?

Participo ativamente de eventos em escolas, acompanhando exposições sobre o livro, releituras e as crianças criando suas próprias versões. Isso me toca de uma forma muito especial, porque, quando criança, eu não tinha referências de escritores e escritoras negras. Eu sabia que existiam, mas não as conhecia. Hoje, além de se verem nos personagens e nas ilustrações, as crianças pretas conseguem se projetar como autoras e autores.Um exemplo marcante foi no dia seguinte ao lançamento do meu livro, quando minha afilhada me ligou por vídeo e disse que queria ser escritora. Quero que as próximas gerações cresçam mais seguras de si, entendendo que podem ser o que quiserem.”

Apesar dos enormes avanços nas últimas décadas, os ambientes do teatro e da escrita ainda são majoritariamente brancos. Quais são suas principais referências?


Para mim, Jeferson Tenório e Conceição Evaristo são duas grandes potências contemporâneas. Eles têm muito a dizer, e sempre me conectam e me trazem de volta quando estou meio perdido — não só na escrita, mas na vida. São autores que me tocam de uma maneira muito especial. No teatro, sempre admirei o trabalho da Grace Passô, uma atriz, diretora e dramaturga, que é o que eu também sou hoje. Com certeza, essas são minhas principais referências e inspirações no momento, mas eu poderia citar muitas outras. Crescemos com tão poucas referências, que tento sempre me alimentar de mais.

Você está produzindo alguma peça hoje?


Atualmente, estou participando como dramaturgo e ator de uma montagem baseada no clássico A Cigarra e a Formiga. Fomos contemplados pelo edital da Lei Paulo Gustavo, e vamos estrear este mês em duas cidades: Barão do Triunfo e Harmonia. Desde o início, a ideia era levar o espetáculo para locais descentralizados, proporcionando essa oportunidade de acesso à arte. Depois disso, também faremos apresentações em Porto Alegre. É um espetáculo bem fabuloso, onde refletimos sobre a importância da arte.

E no final de novembro vamos estrear O Lancerinho Negro, baseado na obra da escritora Angela Xavier. É um espetáculo de rua que aborda o apagamento da história negra e reflete sobre como podemos incentivar meninos e jovens negros a se verem em posições heróicas, em lugares positivos. A peça traz diversas referências ancestrais e propõe uma visão de afrofuturismo para as próximas gerações. A equipe envolvida é toda preta, o que fortalece não apenas nossos processos individuais e coletivos, mas também a questão da representatividade. 

É possivel dizer que a questão racial está sempre presente nos seus trabalhos? 

Com certeza. Quando escrevo ou atuo, sempre foco em alguns tópicos que, para mim, são fundamentais. Um deles é entender a sensibilidade do homem negro que sou e do menino preto que fui. Por exemplo, acredito que muitas pessoas não imaginam que eu sou escritor quando me veem na rua. Então, é muito importante para mim, através das minhas criações, ajudar a mudar esses imaginários. Tudo o que crio vem de um lugar muito íntimo e cuidadoso, e isso reverbera também num espaço de acolhimento.

Te emociona ver as crianças se conectando com os seus trabalhos?
Sim, eu nem sei como colocar isso em palavras. Entro em um estado de euforia e extrema absorção. Este ano, estreitamos o espetáculo de bonecos Bandele, no Teatro São Pedro, que conta a história de um menino que vem da África, baseado na obra da escritora gaúcha Eleonora Medeiros. Eu interpreto dois personagens, sendo um deles um macaco cheio de saberes. No final de uma das sessões, um menino de uns 8 ou 9 anos apertou minha mão e disse: “Eu adorei muito a tua atuação.” Achei isso incrível, pois ele conseguiu entender os códigos e perceber que eu era um ator encarnando um personagem. Essa conexão é profundamente emocionante para mim.

Quais espetáculos você considera mais marcantes na sua carreira?
Um trabalho que me marcou muito foi a adaptação de Woyzeck Preto, que estreamos no ano passado. É um espetáculo poético e político que demanda muita energia e me conecta com as reais problemáticas de ser um homem negro que está sempre tendo que se provar, mostrar seu valor e, principalmente, salvar sua família preta. É um lugar muito dolorido, mas também extremamente satisfatório enquanto artista. Diferente dos espetáculos infantis, esse diálogo atinge um lado do Yannickson mais maduro.

Outra peça que me marcou, e que eu escrevi, é Beco de Três Ruas. Este espetáculo estreou em 2022 e ganhou muitos prêmios, incluindo o de melhor espetáculo no Festival Internacional de Teatro Cidade dos Anjos, em Santo Ângelo. É um espetáculo adulto que aborda várias temáticas, especialmente a LGBTQIA+. Muito do que escrevo se conecta diretamente comigo e com as pessoas ao meu redor, e isso faz com que eu sempre sinta que o que faço está fazendo sentido, sabe?

Hoje, quais são os principais objetivos do seu trabalho?
Um dos principais objetivos de tudo que crio é contribuir para um mundo melhor. E, por um mundo melhor, entendo um mundo mais empático e generoso. Quando estou no palco ou escrevendo um livro, sempre reverencio e agradeço a todas as pessoas que estiveram no palco antes de mim, mas também penso nas próximas gerações. Tenho um afilhado preto de 4 anos, e frequentemente me pergunto: como posso ajudar a construir uma sociedade melhor para ele, oferecendo outra perspectiva? Portanto, diria que meu objetivo é esse: seguir tentando transformar o mundo dentro do que me é possível. Não com a ideia de ser um salvador, mas baseado na coletividade e na colaboração.