Iara Bento: na luta pelos direitos população preta

Conheça a coordenadora do SOS Racismo, programa da Alesp que acolhe e auxilia vítimas de preconceito.

Por Dandara Fonseca

Como Iara Bento costuma dizer, foram várias as situações, ao longo de sua vida, que a levaram para o movimento social. Nascida e criada em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, ela participou do Movimento Negro Unificado em 1989. Após um período mais afastada, no início dos anos 2000, passou a ser uma ponte entre os moradores da sua cidade e o poder público, atuando em diversas frentes: saúde, educação, moradia e outros direitos previstos na Constituição. 

Em 2023, Iara assumiu a coordenação do SOS Racismo, serviço da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo que tem como objetivo acolher e instruir pessoas vítimas de casos discriminatórios. Aqui, Iara fala mais sobre sua história no movimento social e na política, além de explicar como podemos fazer para que a luta contra o racismo seja mais eficiente no Brasil.

Dacor. Pra começar, queria saber um pouco mais sobre a sua infância. 

Iara Bento. Sou nascida e criada em São Bernardo do Campo, especificamente na Vila São José. Ali tem uma referência muito importante pra mim, que é a Curva dos Pretos, um território onde sempre moraram pessoas negras, boa parte delas vinda de Minas Gerais. Fui criada pela minha mãe, que perdeu o marido muito cedo e criou seus filhos só. Sou filha de uma mulher que trabalhou durante mais de 20 anos na área da limpeza, sempre com o objetivo de proporcionar uma vida diferente para mim e para os meus irmãos, para que pudéssemos ter uma história diferente da que ela teve. 

Como aconteceu seu despertar para as questões raciais?

O enfrentamento ao racismo sempre fez parte da minha vida. No entanto, essa questão ficou ainda mais presente quando entrei para o grêmio estudantil do Brazilia Tondi de Lima, colégio onde estudei. Num primeiro momento, a gente lutava pelo passe livre e para que a comunidade pudesse ter acesso ao espaço da escola nos finais de semana. No entanto, começamos a promover ali discussões que também passavam pelo tema racial, e fui percebendo questões como o racismo recreativo, atitude ainda muito presente nas escolas e que, naquele momento, era lida como uma brincadeira. É assim que, em 1989, participo do Movimento Negro Unificado. 

E como foi essa experiência? 

Foi muito importante. Durante esse período, São Bernardo do Campo acabou sendo protagonista de discussões que, anos depois, se concretizaram, como a criação do feriado de 20 de novembro e a necessidade de incluir a questão racial no currículo escolar, hoje garantida pela Lei nº 10.639. No entanto, nos anos 90, acabei mudando de escola, deixando o grêmio estudantil, e minha militância deu uma esfriada.

Quando você volta a se organizar?

Embora nunca tenha deixado de atuar, voltei com mais afinco a partir de 2002, quando deixei um emprego em São Paulo. A partir daí, segui em São Bernardo do Campo atuando em diversas frentes, não apenas na questão racial. Um bom exemplo é na defesa pela saúde. Foi nesse período que conseguimos estabelecer uma cadeira para o movimento negro no Conselho Municipal de Saúde, a qual eu ocupei. Pode parecer pequeno, mas isso é muito importante porque, normalmente, a saúde é tratada como se fosse igual para todos. No entanto, a população negra possui necessidades específicas que precisam ser abordadas com cuidado e atenção.

Em quais outras pautas você atuou?

No acesso à educação, cultura, habitação, água, via pública de qualidade… Passei a fazer essa interlocução com o poder público para que pudéssemos garantir direitos que estão presentes na Constituição, mas que a população vem perdendo ao longo da história. Conforme as pessoas percebiam que eu era uma ponte, alguém que poderia ajudar, foram aparecendo novas demandas, novos pedidos, e eu acabei ficando.

Teve alguma conquista desse período que te marcou? 

Sim. Parte do lugar onde moro era uma viela, uma área que passava dutos da Transpress por vias subterrâneas e tinha torres da Enel por vias aéreas. O sonho dos moradores mais antigos da região era ver esse pedaço pavimentado e iluminado. Passamos três anos discutindo com o poder público e com os outros atores colocados na situação até que a gente conseguisse chegar a um senso comum. Hoje, um calçamento foi colocado e, pela primeira vez, a luz chegou naquele local. Essa pra mim foi a materialização de que é possível alcançar  objetivos através da luta coletiva. 

Aproveitando a história, como você vê a questão da moradia hoje? 

O poder público tem uma dívida enorme com as pessoas em situação de rua. Nós temos diversos prédios públicos e privados no centro de São Paulo, por exemplo, inutilizados por conta da especulação imobiliária, e nas demais capitais não é diferente. É aquela famosa frase: ‘é muita gente sem casa e muita casa sem gente’. Também precisamos ter em mente que a pessoa que não tem um lugar digno para viver provavelmente não tem trabalho, acesso a equipamentos de saúde, de educação, ao transporte público. Tudo é negado a ela. 

E a sua carreira na política, quando se intensifica?

Essa conquista onde morava funcionou como uma injeção de ânimo, e a partir daí me tornei mais presente no Partido dos Trabalhadores, onde já era filiada. Fui discutindo mais a fundo as pautas, questionando com mais propriedade, fazendo parte dos debates… Até que, no final de 2013, me aproximei do mandato do Deputado Teonilio Barba, que na época era dirigente do Sindicatos dos Metalúrgicos e morava na mesma rua que eu. Ele foi eleito em 2014 e, ao ser empossado em 2015, me fez o convite para compor a assessoria dele, da qual faço parte até hoje.

Quais outros cargos você ocupa hoje?

Desde 2018, sou vice-presidente do diretório do Partido dos Trabalhadores. Já em 2023, assumi a coordenação do SOS Racismo na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Para mim, esse foi um grande reconhecimento do trabalho que venho fazendo em defesa da população negra, do nosso povo. Lá dentro, tenho a oportunidade de dialogar com nossos 94 parlamentares, e uma das coisas que sempre reforço é que todos devem respeitar a pauta racial. Afinal, independentemente da cor de pele, todos tiveram votos de pessoas negras.

Como funciona o SOS Racismo? Você pode contar um pouco mais sobre o seu trabalho lá?

No SOS Racismo, realizamos o acolhimento das denúncias de pessoas do estado de São Paulo que sofreram racismo, xenofobia, intolerância religiosa e outras formas de discriminação e preconceito. Ao chegar uma nova denúncia, eu e minha equipe fazemos uma avaliação e verificamos quais são os caminhos e possibilidades que podem ser adotados no caso, buscando uma solução para a pessoa que teve seu direito violado pelo racismo.

Tem algum ambiente onde os casos de racismo são mais propensos a acontecer? 

É muito comum acontecer no trabalho e em lojas, shoppings e supermercados, quando você é seguido por um segurança, parado para uma revista… Ano passado, também recebemos um número significativo de denúncias de racismo em ambientes escolares. Nestas situações, é necessário pensar: por que essa criança está praticando racismo? Ela realmente é assim ou está apenas reproduzindo o que acontece em seu ambiente familiar? Devemos oferecer apoio à vítima da violência, mas também buscar entender porque uma criança está cometendo esse ato discriminatório. Afinal, esses serão os adultos do futuro, e é essencial corrigir o rumo neste momento.

Todas as denúncias têm resultado?

A fala da vítima é primordial para que a gente possa iniciar a apuração, mas, ao mesmo tempo, é necessário ter algum elemento substancial para darmos continuidade ao processo. Quando digo isso, é uma testemunha, um vídeo, uma câmera que tenha gravado a ação, ou até mesmo um print. O problema é que, muitas vezes, o crime de racismo ocorre em momentos em que você não consegue produzir provas. Além disso, por estar abalada com a situação, a vítima pode não prestar atenção nos detalhes, trazendo informações frágeis para a gente. Tudo isso acaba dificultando nossa capacidade de prosseguir com a investigação.

Iara bento, mulher negra e diretora do SOS racismo segurando um bebê, seu neto

Quais dicas você daria para que as denúncias se tornem mais efetivas? 

Se a situação acontecer em um estabelecimento como um supermercado, registre no serviço de atendimento, faça um boletim de ocorrência e encaminhe para a gente. Assim, conseguimos preservar as imagens das câmeras, que costumam ser apagadas após algumas semanas. Guarde o nome da pessoa que praticou a violência, o horário que ela aconteceu e outras informações e provas importantes. Se você tiver condições, também vale contratar um advogado particular que tenha conhecimento sobre o assunto.

Muita gente diz que as leis contra o racismo não funcionam no Brasil. Você concorda? O que é preciso fazer para que elas sejam mais efetivas? 

O Brasil possui uma das melhores e maiores legislações de combate ao racismo do mundo. Ela funciona e tem cumprido o seu papel de garantir o direito da nossa população. O que é preciso é que o sistema de justiça seja menos moroso, que a resposta para esse tipo de violência seja mais rápida. Além disso, é essencial que quem receba a denúncia tenha um entendimento adequado sobre o assunto. Aqui em São Paulo, por exemplo, temos a Decradi, uma delegacia especializada em crimes raciais e de intolerância. Fora da cidade, encontramos delegacias comuns, onde os funcionários podem não estar habilitados para lidar com denúncias de racismo. Às vezes, tratam o caso de qualquer maneira, enquanto em outras ocasiões a vítima enfrenta uma burocracia tão grande que acaba desistindo.

Para você, quais devem ser os próximos passos da luta contra o racismo?

Atualmente, tem muita gente atuando no combate ao racismo no Brasil, mas está cada um no seu quadrado. Precisamos criar uma rede que ultrapasse os muros da esquerda ou da direita, do partido X ou Y. Afinal, apesar de afetar as pessoas em níveis diferentes, o racismo pode acontecer com qualquer um. Também precisamos levar a discussão racial para os ambientes de formação, para que todos possam entender, por exemplo, os elementos necessários para fazer uma denúncia. Por fim, é necessário pressionar, como sociedade, o poder público, para que ele possa ressarcir a população negra, que foi e continua sendo marginalizada. 

Como é ser uma mulher negra na política?

É difícil pelo seguinte motivo: hoje, o número de mulheres — principalmente de mulheres negras — na política brasileira ainda é muito pequeno. Das 94 cadeiras da Alesp, por exemplo, apenas 25 são ocupadas por mulheres. A população precisa entender a importância de ter pessoas semelhantes a elas na política. Não apenas porque elas trarão debates necessários, mas também porque, se não nos vemos nesses espaços, não acreditamos que seja possível estar ali.

Em 2024, teremos o processo eleitoral municipal, e quero acreditar que vamos avançar ainda mais na questão da representatividade, inclusive com ferramentas como os mandatos coletivos. Também é importante lembrar também que precisamos acompanhar a atuação das pessoas para quem damos o nosso voto: o que que ela está aprovando? Quais projetos está apresentando? Sua atuação condiz com o que ela disse no período de campanha? Se não, precisamos ir lá cobrar. 

Existem medidas sendo tomadas para que a política seja um ambiente mais seguro para as mulheres e para as pessoas pretas?

Nós tivemos dois casos muito emblemáticos de violência de gênero e racial recentemente. Depois disso, houve um compromisso da Alesp de atuar no enfrentamento dessas atitudes. Para isso, foi construída uma cartilha, que contou com a participação das 25 deputadas presentes na Assembléia e do SOS Racismo. O material visa mostrar para os deputados que a nossa sociedade mudou, e que algumas atitudes que eram toleradas no passado, hoje não são mais. Cada novo servidor que entra, recebe esse material. Também foi aberto um canal de denúncias para trabalhadores da Alesp, mas que atualmente se encontra aberto para a população. 

Na sua opinião, como os dados podem auxiliar no enfrentamento ao racismo? 

Os dados são essenciais para que a gente possa construir políticas públicas. Precisamos saber qual é o tamanho da nossa população, onde ela está, a quais serviços ela tem acesso… Sem essas informações, não conseguimos criar políticas efetivas, que vão impactar positivamente a vida das pessoas. Também é extremamente importante obtermos dados sobre os serviços de combate ao racismo: quais existem? São efetivos? Onde estão esses equipamentos? Só assim conseguimos avançar. 

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