A Academia Brasileira de Letras (ABL), um dos mais antigos institutos culturais do Brasil, que possui como propósito preservar a língua portuguesa e a literatura brasileira, foi criada no fim do séc. XIX, em 1896. Desde sua fundação, conta com 40 “cadeiras” que vão tendo seus “donos” (denominados de “patronos”) trocados à medida que os mesmos falecem. À época, os próprios fundadores escolheram os patronos que ocupariam as tais “cadeiras”. Ao longo do tempo, houve um significativo contingente de patronos se sucedendo enquanto “imortais”, designação dada a quem é escolhido para o cargo. De lá para cá, ou seja, em 125 anos, foram eleitos 220 “imortais”. Até o ano de 2021, especificamente até novembro, sabem quantos “imortais” negros haviam sido escolhidos? Um. Isso mesmo. Repetindo: em CENTO E VINTE E CINCO ANOS, 1 (!!!) único negro fora merecedor de se tornar um “imortal” da ABL. Ah, e isso já no século XXI, especificamente em 2006, com Domingos Proença Filho. Isso representa menos de meio por cento. Em que pese Machado de Assis ter sido um dos fundadores da ABL (independentemente do “branqueamento” de que foi vítima), falamos aqui exclusivamente dos patronos. Claro que a ABL, especialmente quanto à escolha dos ocupantes das cadeiras, sempre foi cercada de questionamentos e críticas. Mas isso muito mais (senão exclusivamente) pelo fato desse ou daquele escritor jamais ter se tornado um patrono (como por exemplo, Carlos Drummond de Andrade, Caio Prado Júnior, Graciliano Ramos, Paulo Leminski) do que por questões de raça ou de gênero. Até sobre esse último, pode-se interrogar por qual razão Cecília Meireles, Clarice Lispector, Cora Coralina não mereceram ter se tornado “imortais”? Aproveitando a menção a escritoras, registre-se que a proporção de mulheres eleitas na ABL nesse um século e um quarto é tão perturbadora e descabida quanto à dos negros: 9 (!!!), já contando com Fernanda Montenegro, eleita em novembro de 2021. Percentualmente, representam 4,5% de todos e de todas “imortais”, sendo que, somente em 1977, houve a primeira mulher eleita, Rachel de Queiroz. Inclusive, em 2018, Conceição Evaristo poderia ter se tornado a primeira mulher negra a ocupar uma cadeira na ABL. Poderia, uma vez que, ao lado de outros 10 candidatos, ela teve apenas 1 voto. Os dois mais votados, homens e brancos, tiveram, respectivamente, 22 e 11 votos. Embora sua derrota fosse prevista, a candidatura de Conceição Evaristo serviu para evidenciar – e reforçar – a completa ausência de representatividade negra/feminina na secular academia. Enfatizando a minguada representatividade negra na ABL, a eleição de Gilberto Gil, em 11 de novembro de 2021, fez a porcentagem dos imortais negros dobrar, irrisoriamente, de 0,45% para 0,90%. Os exemplos de como o racismo (e o machismo) se espalha e se entranha nos valores, nas regras (formais e informais), no comportamento dos seres humanos, nas estruturas e nas práticas de variados institutos sociais, são incontáveis. Esse é “apenas” mais um. Qualquer mudança (macro ou micro) passa pelo inconformismo e pela quebra do silêncio e da passividade. Mas antes de tudo, há que se enxergar uma determinada situação/condição para que ela mereça ser objeto de mudança. Por isso temos, todos, que exercitar, cotidianamente, nossos olhos de ver pois nós só podemos mudar aquilo que conseguimos efetivamente compreender. E você, tem materializado seus olhos de ver, também, para a condição de o racismo ser regra e não exceção?
Gilberto Gil “menos de 1%” e os Olhos de Ver
- Post author:Alexandre Dantas
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- Post published:6 de Fevereiro de 2022
Tags: Academia Brasileira de Letras, Conceição Evaristo, Gilberto Gil, invisibilidade, machado de assis, representatividade
Alexandre Dantas
Co-fundador do DACOR. Doutor e Mestre em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”- UNESP – Araraquara. Docente por mais de 20 anos na PUC– Minas. É autor de “Vão e Desgraçado (e outros contos tão desimportantes quanto)”, publicado pela editora Urutau, em 2018.