Convocação ao Antirracismo

É sintomático que, em pleno Dia da Consciência Negra (20 de novembro), pouco mais ou pouco menos de 24 horas após o inominável assassinato de João Alberto Silva Freitas (espancado até à morte por seguranças no estacionamento de um supermercado Carrefour), o vice-presidente da república, Hamilton Mourão, ao ser questionado se tal crime possuiria conotação racista, afirme, “com toda tranquilidade” que não existe racismo no Brasil. E ainda buscou para a sua declaração a justificativa de que o racismo é “algo que querem importar”. E não satisfeito com tal afirmação, ainda emendou a repugnante “constatação”: “Morei dois anos nos Estados Unidos, racismo tem lá. Na minha escola, o pessoal de cor (sic) andava separado. Isso eu nunca tinha visto no Brasil. (…) Nós temos uma brutal desigualdade aqui, fruto de uma série de problemas, e grande parte das pessoas de nível mais pobre, que tem menos acesso aos bens e as necessidades da sociedade moderna, são gente de cor (sic)”. Como registram os mais variados dicionários, preconceito significa opinião formada antecipadamente sem maior ponderação – ou razão – devido à generalização de uma experiência pessoal ou imposta pelo meio. Assim, constrói-se um pré-julgamento, que se reveste e se preenche de uma intolerância e de uma intransigência tais, que, muitas vezes, o indivíduo preconceituoso nem se dá conta de sua deletéria condição, naturalizando-a. E tal construção se potencializa pelo etnocentrismo: a tendência de um indivíduo em considerar como inferior aquele que não compartilha de suas práticas, sejam culturais, sociais, econômicas, etc., terminando por desqualificar e desconsiderar o outro. E o racismo é uma forma atroz de desconsideração. Fazem parte da equação da prática racista o aparte, quando não a ridicularização, o achincalhe, e de forma mais dorida, o ódio e a violência, também física. Assim, uma argamassa de preconceito, etnocentrismo, ódio e violência históricos ajuda a entender as razões de 56% da população brasileira, 64% dos 13 milhões de desempregados do país, 75% dos 10% mais pobres do país, 47% dos trabalhadores informais, 54,9% da força de trabalho nacional serem compostos pode pessoas negras (de acordo com IBGE “Desigualdades sociais por cor e raça no Brasil”, 2019),  Não fosse assim, talvez, 61% da população carcerária e 75% dos mortos pela polícia no Brasil, não seriam compostos apenas por pessoas negras (e isso sem levar em consideração, por exemplo, as mortes violentas por causa indeterminada bem como a dificuldade, em muitos estados, de um registro fiel mais próximo da realidade envolvendo essa situação). Desse modo, não há como dissociar tal condição do trágico fim da vida de João Alberto bem como da fala de Mourão. Claro que uma única morte como a de João ou uma única fala como a do general já representaria, por si só, uma dor enorme, que, muitas vezes, não se cura. Mas muito pior é saber que houve e ainda haverá muitos “Joões Albertos” exterminados coniventemente pelo estímulo e amparo de discursos de muitos “Mourões”. Que racionalizemos a discussão sobre a violência contra as pessoas negras, que enxerguemos o racismo estrutural que permeia a sociedade brasileira, que possamos sensibilizar o maior número de pessoas possível para que tal condição seja notada e considerada, que alicercemos o caminho para a prática da boa luta a fim de desmistificar e desconstruir esse racismo, associado ao preconceito e ao etnocentrismo, alimentado pelo ódio, materializado em violência. E, claro, que nos indignemos em relação a essas informações! Assim como Criolo, na letra de “Convoque seu Buda”, do álbum homônimo, prescreve a sublimidade como expediente para o enfrentamento do pandemônio cotidiano, solicita-se, aqui, que cada um, leitor desse texto, convoque o seu incômodo, o seu bom senso, o seu empenho, a sua esperança para nos auxiliar no enfrentamento da sórdida prática do racismo. Quem virá conosco?

Alexandre Dantas

Co-fundador do DACOR. Doutor e Mestre em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”- UNESP – Araraquara. Docente por mais de 20 anos na PUC– Minas. É autor de “Vão e Desgraçado (e outros contos tão desimportantes quanto)”, publicado pela editora Urutau, em 2018.