MAY SOLIMAR: ARTE CONTRA O RACISMO
Saiba mais sobre o trabalho da paulistana que usa a arte — especialmente em formato de quadrinhos — para falar sobre a realidade das pessoas pretas no Brasil.
Dandara Fonseca
Nascida no bairro de Campos Elíseos, centro de São Paulo, May Solimar sempre gostou de desenhar. No entanto, durante a infância, todos os personagens que ela dava vida no papel eram brancos — resultado da falta de representatividade não só na escola, mas nos filmes e séries que assistia. May cresceu, foi cursar publicidade, teve contato com as pautas raciais e, durante a pandemia, quando se reconectou com esse antigo hábito, tudo mudou: ela passou a desenhar pessoas pretas em lugares de protagonismo, algo que sentiu falta durante toda sua vida.
Foi nessa mesma época que a paulistana descobriu os quadrinhos, formato que unia o desenho a outra de suas maiores paixões: a escrita. Hoje, além de trabalhar como designer, ela usa sua arte para dois principais objetivos: promover o letramento racial e criar um espaço de cura e acolhimento para pessoas pretas. Suas ilustrações também falam sobre outros temas que a atravessam, como o machismo e a experiência de ser uma mãe solo.
Nesta entrevista, May, que fez as artes do Relatório de Atividades de 2023 aqui do Dacor, fala sobre sua trajetória, revela as principais inspirações do seu trabalho e conta seus próximos objetivos.
DACOR. Pra começar, queria que você contasse um pouco mais sobre você, sobre a sua infância.
May. Eu nasci e cresci no centro de São Paulo, no bairro de Campos Elíseos. Desde pequena estudei em um colégio particular, entre muitas pessoas brancas. Eu era a única negra da sala, sofri racismo, sofri todas as coisas possíveis, mas não entendia o que estava rolando. Trazia muito pra mim, sentia que havia um problema comigo. Achava que tudo aquilo acontecia porque estava fazendo algo errado, porque merecia…
Você sempre gostou de desenhar? Como surgiu esse interesse?
Uma das primeiras coisas que a gente faz na infância é ter contato com a arte. Antes mesmo de escrever, estamos desenhando. E eu comecei a gostar muito dessa atividade quando era criança. O curioso é que nessa época eu só desenhava pessoas brancas, acho que principalmente por conta da falta de representatividade. Eu sempre assisti muitos filmes, e a grande maioria dos protagonistas eram pessoas brancas. Por isso não passava na minha cabeça, por exemplo, me desenhar. E desde essa época você já havia decidido que queria trabalhar com arte?
Não exatamente. Quando cresci, me distanciei um pouco do desenho. Na hora de escolher a faculdade, por conta da ideia de que artes não dá dinheiro, fui fazer publicidade. Diferente do que eu pensava, não tinha nada de desenho, mas tinha comunicação. E a arte que eu faço, sobretudo nos quadrinhos, tem o objetivo de comunicar algo. Então eu vejo que ser publicitária faz diferença no meu trabalho atual.
E quando aconteceu esse reencontro?
Foi em um curso de audiovisual onde comecei a me conectar novamente com as artes. Mas os desenhos pelos quais sou conhecida hoje comecei a fazer e compartilhar nas redes durante a pandemia, um momento onde a gente não tinha como olhar para fora, e passou a olhar para dentro. Eu, mãe solo, trancada com a minha filha de cinco anos em casa. Às vezes não tinha nada para fazer, pegava um papel e começava a rabiscar.
E aí as discussões sobre questões raciais já estavam mais presentes na sua vida?
Em 2017, cursei gestão cultural no SESC, e nesse curso tive contato com pessoas pretas que tinham muito mais envolvimento com a pauta racial do que eu. Foi conversando com elas que fui entendendo coisas que não havia entendido a vida inteira, as fichas começaram a cair, sabe? Comecei a falar mais sobre o assunto, frequentar lugares, ler, ver filmes… E aí, diferente da infância, quando voltei a desenhar, não conseguia mais desenhar pessoas brancas. Meus desenhos passaram a ter uma narrativa ativista, com pessoas pretas ocupando um lugar de poder, de resistência, de protagonismo, o que raramente via acontecer nas artes.
Os quadrinhos surgiram quando?
A maioria dos meus desenhos eram uma pintura única, não tinha uma narrativa. Até que em 2022, o Will Rez, da Kitembo, uma editora focada em publicar pessoas pretas, me convidou para participar do Almanaque 2k22 – Quadrinhos Futuristas. Eu nunca tinha feito quadrinho, mas decidi tentar. Ao mesmo tempo que sofri muito pra fazer, foi uma virada de chave. Porque percebi que podia comunicar as coisas de outra forma. Eu continuo gostando de fazer os outros tipos de arte, mas os quadrinhos juntaram o desenho com outra coisa que sempre amei, que é escrever.
Você sente que as pessoas têm mais abertura pra aprender sobre certas pautas quando estão no formato de quadrinhos?
Sabe aquela famosa frase de que desenhando a pessoa entende melhor? Eu acho que é muito real. Quando a gente conta uma situação de racismo, por exemplo, a outra pessoa precisa imaginar. Já no quadrinho, não. Ela está ali. Ele também funciona muito bem nas redes sociais. Por ser estático, por você poder ver e ler no seu tempo, diferente de um vídeo, por exemplo.
Se você fosse elencar os principais objetivos da sua arte hoje, quais seriam?
Eu faço uma arte focada em raça, gênero e várias outras questões importantes pra mim, como ser mãe solo. Ela tem como objetivo provocar, mexer com as pessoas e trazer reflexões, e não apenas ser admirada, observada. Quero que as pessoas pensem “nossa, nunca refleti sobre isso, por esse ângulo”, ou então “já passei pela mesma situação, e essa arte me ajudou, me emocionou.” Recebo esse feedback de vez em quando e fico muito feliz. Porque é um desejo meu que minha arte toque e que faça a diferença na vida das pessoas.
Quais são as suas principais inspirações?
São esses atravessamentos meus. Sendo uma mulher preta e mãe solo, tudo que sai de mim é uma arte de resistência. Tudo sai com as minhas dores, com a minha vivência. A ideia é colocar a minha subjetividade e meus sentimentos em algum tema.
Como a sua arte pode ajudar na luta contra o racismo?
Eu acho que ela serve de duas formas. Primeiro, para o letramento, pra quem não entende o que é o racismo, como ele se manifesta. Às vezes só um desenho, sem nenhuma palavra, consegue passar o recado, é capaz de fazer alguém parar e refletir sobre as questões raciais. E segundo, em um lugar de conforto, para pessoas pretas olharem e entenderem que outras já passaram por situações similares, estão lutando pela mesma causa. É uma forma de acolhimento, delas não se sentirem só. Acho que esse é o papel da minha arte na luta antirracista e em todas as outras.
Sua arte também é um processo de cura?
Sim, eu uso muito pra desabafar sobre as coisas que eu passo. Às vezes penso que as pessoas vão achar quase é frescura, mas normalmente surge um monte de gente concordando, compartilhando experiências… Então não serve de cura apenas para as outras pessoas, mas pra mim também.
O que você ainda deseja conquistar? Quais são os seus próximos objetivos?
Eu quero um dia ter um livro publicado com as minhas artes. Quero que pessoas de vários lugares do mundo conheçam meu trabalho. Quero juntar cada vez mais mulheres e homens negros para termos diálogos sobre como, principalmente através da arte, podemos fazer com que as coisas fiquem melhores pra gente.